quarta-feira, 6 de maio de 2009

O violão elétrico do Johannes (House of the rising sun)

Vi Johannes pela primeira vez na Paulista, bem próximo ao Paraíso. Ele tocava e cantava House of the Rising Sun do The Animals no violão e tinha uma placa dependurada ao pescoço: “Dou aulas de italiano”. A figura, a situação e tudo o mais me impressionou. Ele tocava muito bem essa que é uma das músicas preferidas de muita gente, era super alto, tinha uma fisionomia intrigante, uma altivez alemã, um quê de Max von Sidow, usava paletó, calça, sapatos e blusa social quadriculada, e estava em um lugar pelo qual ninguém passava. Não parecia ligar para o que quer que fosse. Depois de muito tempo, vi Johannes com uma flauta. Ele fazia a mesma coisa: tocava-a – só que dessa vez estava em frente à Reserva Cultural, embora também não se detivesse em nada além da flauta. “Tudo bem” – pensei. Semanas depois disso, vi Johannes por uma terceira vez: vendendo sorvete na Brigadeiro. Comecei a rir. “Um personagem!” – pensei. Me pareceu meio louco associar aquele mesmo sujeito grandalhão que cantava The Animals a esse que agora empurrava todo desengonçado um mini-carrinho de sorvete pelas ruas. Resolvi que da próxima vez que o visse iria procurar saber. Saber o que? Qualquer coisa. Sei lá, gosto de “saber” das pessoas – e isso às vezes me coloca em péssimos lençóis. O fato é que hoje vi Johannes ali por perto do Extra, o supermercado, e fui falar com ele. Ele parou o que estava fazendo e, logo que eu comecei a fuzilá-lo com perguntas, disse para eu ter calma e, em seguida, confirmou minhas suspeitas: era alemão, tinha morado nos EUA e acabou vindo para o Brasil com os pais que eram missionários evangélicos – embora não se desse bem com eles, com o resto da família e não tivesse amigos. Viu minha bolsa da USP e perguntou se eu estudava lá. Eu disse: “Sim”. E ele: “Não gosto de pessoas que estudam na USP”. E emendou: “Não gosto de pessoas. (...) Elas só querem saber de beber, falar de mulher e futebol”. Depois disse que, apesar de eu estudar na USP e ter onde morar, ele poderia ser mais inteligente e feliz do que eu. Eu disse que não estava competindo com ele para saber quem era mais ou menos inteligente ou mais ou menos feliz – eu só queria conhecê-lo. Pedi desculpas por incomodá-lo. Ele relaxou um pouco, me deu uns livretinhos da Igreja Anglicana e disse que precisava de R$ 1,00 para acessar a net. Eu dei a “grana” e fui acompanhando o cara Brigadeiro abaixo. Foi aí que contei da vez que o vi tocando The Animals na Paulista. Ele riu. Disse que isso fazia muito tempo (realmente!) e que haviam roubado o violão dele na esquina da Penha com a Brigadeiro numa noite dessas. Quando acordou, o violão elétrico que o pai lhe dera de presente não estava mais lá.

Putz, o Johannes é um daqueles caras dos mais estranhos, complexos, totalmente inaptos a viver em sociedade, no entanto de uma lucidez infame – visto que não é difícil se identificar com seu modo à margem e misantropo de agir. Talvez falte a ele aquele fixador** ao qual o Jean Cocteau alude; além, é claro, das bilhares de questões religiosas que, literalmente, acometem o cara como uma doença. Não estou mesmo a fim, na verdade, de refletir sobre o Johannes (quem sou eu?); isso foi só um relato. Ocorre que o Johannes – que é aquilo que nós nos acostumamos a chamar de mendigo e, categorizando, colocar tudo dentro do mesmo saco – não gosta de gente mas se amarra em música (bom, ele disse que nem tanto...). Enfim, people, roubaram o violão do cara e, assim, quem tiver um sobrando em casa, largado às traças, esquecido em um cantinho, por favor, deixe pro Johannes ali na Igreja Anglicana (ou Americana, não sei ao certo) perto do Extra da Brigadeiro, onde, acredito eu, alguém deve conhecê-lo. Valeu. Acho que ele vai gostar.(Ah, ele também quer se casar com uma norte-americana que o leve de volta para a América...).

** "Existe no homem uma espécie de fixador, quer dizer, de sentimento absurdo e mais forte que a razão, que o faz encarar essas crianças brincando como uma raça de anões, em vez de um bando que grita: “ sai da frente que atrás vem gente.”
Viver é uma queda horizontal.
Sem esse fixador, uma vida sempre atenta à sua própria velocidade se tornaria intolerável. Ele permite que o condenado a morte durma.
Careço desse fixador. Imagino que seja uma glândula enferma. A medicina encara essa enfermidade como um excesso de consciência - uma vantagem intelectual.
Os outros sempre me dão provas do funcionamento desse fixador ridículo, tão indispensável quanto o hábito que nos dissimula a cada dia o horror de ter que levantar, fazer barba, pôr roupa, comer. Algo assim como o álbum de fotografias, fruto de um dos instintos mais bizarros que nos leva a fazer de uma pirueta uma seqüência de monumentos solenes.
O ópio me proporcionou esse fixador. Sem ópio, projetos como casamento, viagens, me pareciam loucura igual a de alguém que despencando pela janela, ao passar pelas janelas dos quartos abaixo desejasse se tornar íntimo de seus ocupantes". Jean Cocteau

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