quinta-feira, 26 de março de 2009

Ela
“Era o recomeço de toda uma trajetória lazarenta, que deslocara sua nóia para o seio da estratosfera. “Eu Terráquea” - pensou. Nada de inconstâncias. Um hálito soprou em seu cangonte, ela derreteu sôfrega. Violada, dilacerada, corrompida. Sem amante, sem miséria, sem família. Um soalho inundado de reverberações cinzentas, nas quais mal se esgarçavam seus próprios catarros. Amarelados como sois, como as cores, como os seres viventes que, apesar de unitários, parecem ser especialmente idênticos. Inigualavelmente os mesmos, coroados pela luz que irradia sem desvios do ventre materno. Cada asneira que dizia: um remorso. Cada prego na boca: uma fugidia lista de contos trágicos. Desajustada e silenciosa antevia o breu antes mesmo que os holofotes se perdessem – apagava-se.


Uma meninona ruiva, famélica e desavisada, sem percalços a mais em sua sintonia. Quatro horas da tarde, pousada em sua caminha feito um rouxinol. Achava-se assim, toda quebradiça, porcelânica. “Viajarei, enfim, aos saltos, um canguru.” Cetim, carmesim, todos os penachos de coisas, todos os semblantes de rostos direcionados a ela, encarando-a sutilmente enquanto subiam o vão central da sexta-feira. “As pessoas, cada uma uma, cada uma uma face apimentada de momentos, de olhares enfurecidos, cada rosto na estrada um dejà vu.” Queria encontrá-lo, aquele garotão que explicar-lhe-ia de que maneira poderia, assim, na moita, jogar conversa fora com a figurinha assexuada que residia ali, dentro dela. Um rasgão non-sense na cavidade sonâmbula dos sonhos, uma crise de firulas, um sol – manhã. Enrubesceu.

Não estava entendendo nada, queria pensar o pensamento que se pensa formalmente, top-secret, sem cenário de peça maldita, sem fibrilações de uma versão da bíblia, sem se perder. Queria um historinha desvirgulada, intitulada “meio, fim e começo,” redigida toda gratuitamente, uma fábula moral explicitamente perturbada, entremeada de suspiros e de creme de chantilly: no cafezinho. Pouca coisa. Começou:

Era uma vez ela (“Ela” está bem, assim inominada, uma “ela” qualquer). Ela não era só, morava com dois irmãos num casebre às margens de um rio (tudo aqui são imagens). Ela sofria, vivia choramingando pelos cantos da tal residência que nunca existira. Ela era virgem (e daí?). Ela apreciava os espaços vagos, atarracados, as cores vivas, e era em função disso que, apesar de se abrigar ao ar livre, à sombra dos castanheiros e das amendoeiras, seu sonho maior consistia em possuir uma casa com borrifos esmaltados decorando o roda pé. Ela vivia imersa num passado atroz que catapultara sua existência às raias do nada. Ela vivia se lembrando da casa que nunca postara-se, do aroma que nunca sentira, dos desejos desarticulados sobre os sinais de trânsito em pleno bosque. Uma mendigona. Ela inventara um “ontem”, um orgasmo colossal e anterior a tudo, uma mentirinha surda e cálida. E era onde residia: na sua choupana às bordas do riacho.”

Nenhum comentário: