Ficara cego, surdo, mudo. Uma nebulosa vagava impunemente a alguns milímetros de seus olhos, embaçando o vidro e, no entrechoque das pálpebras, ao invés de fazer chover (ou ver), impelia-o a se abrigar em uma caverna a milhas de distância dali. Era quando acendia a lamparina e ficava iluminando a dor. De resto,o brilho das luzes, o desencontro dos volumes, o tráfego de saiotes, os confetes – nada tirava-o daquela espécie de transe. Os ouvidos, por sua vez, levitavam ao encontro do silêncio, de modo que a algazarra feita pelas marchinhas, tocadas ao vivo por um desses grupos que surgem apenas em época de carnaval, lhe passava totalmente despercebida. Seus amigos, todos bebuns, jogados por aquele imenso salão de quatro ou cinco andares, haviam migrado para direções opostas a dele tão logo entraram. Deglutido pelo tumulto, não foi difícil para ele alcançar seu mais novo objetivo: perder-se – não para todo sempre, claro, mas só no intervalo temporal daquele porão de relâmpagos –, sem nem saber, aliás, o que diabos estava fazendo de pé. Driblou uma moça ou outra que lhe suplicou por um beijo apaixonado e acabou serenando invisível aos foliões em um corredor do segundo andar. Eu, que entrei em seguida, atrasada pela fila, procurava-o. Mas quando me vi em meio àquele bloco profético, depois que uma mocinha me deu um pedaço de papel, o qual prontamente amassei sem nem saber que se tratava da comanda, achei que jamais fosse vê-lo novamente – sendo que esse “jamais” era uma hipérbole para as próximas 12 horas ou 12 chopes. No entanto, ao subir alguns lances de escada, avistei-o. Pele branca, cabelos encaracolados e estatura mediana. Ele não queria se esconder. Na verdade, conseguira um espaço relativamente vazio para se instalar: ao lado do toilet. “Será que perdeu o olfato?” – pensei. Até aí – contei –, eram três sentidos primordiais que já lhe faltavam. Andei em sua direção e, sem opções, cutuquei seu ombro direito. Ops, quatro: o tátil. Lacei-me à sua frente e berrei: “Meu vestido preto ficou aí?”. “Como assim vestido preto?” Ele pareceu resmungar com o sobrecenho - embora, de fato, não tenha dito porra nenhuma. Estacionou suas pupilas em mim durante um bom tempo (como se eu fosse uma estranha), afiando lâminas, fazendo a carne sangrar e, incomodada, dei um passo para trás – Calma lá!... Adorava o jeito como ele me fitava – desbravador, titânico, sem receios, pronto para travar qualquer embate, pronto para dizer qualquer verdade, pronto para instaurar um novo regime onde nós, seus súditos, reportar-se-iam sem intermediários ao rei – o Bom, o Belo, o Ideal. Um arqueiro libanês do olhar. Com um golpe de vista, acertava em cheio, aniquilava, seduzia, tremeluzia até o curto-circuito. Era elétrico o que se passava por aquelas bandas, e se por acaso eu levasse aquilo adiante acabaria mastigando-o, comendo-o, lambuzando-me. Não sei exatamente como, mas ele sabia todos os crimes que eu não cometeria. Talvez por isso, magnético, invadisse-me feito um pênis adentra uma xota e fica por ali em standby alheio ao próximo take. Não. Nada disso. Era só um menino fascinante.
domingo, 26 de abril de 2009
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