sábado, 6 de junho de 2009

Manhã, tarde, noite e madruga (es)colhidas ao léu

Manhã
"Entre as partes da manhã que mais apreciava, se escondia o sibilo das aves, sobretudo o dos bem-te-vis, que se espalmavam junto à chegada do sol celebrando a benção da luz. A isso se seguia o olhar do tempo, lançado sobre toda a estrutura de seu corpo. Essa chamada, pungente e obscura, arrefecia as vozes que ressonavam por ali, fazendo com que a noite se antecipasse à manhã, e que outras palavras, bem mais tristes, se fizessem audíveis.

Ao contrário da claridade, esse torpor não vinha de fora, mas partia de dentro de si, alojando-se no cerne de seu peito. Era uma espécie vulto sorvendo o que nele havia de vivo, deixando-o, com o passar das horas, esgotado, em estado de desespero profundo. Um desespero mudo, baixo, cuja histeria há muito se dissipara, e que invariavelmente conduzia suas mãos aos músculos do rosto, distendendo-os, como se, dessa forma, pudesse reencontrar sua alma perdida".

Tarde
"Gostava das coisas mais disparatadas: Reznor e Smith. Gostava da praia e das estrelas, ambientes fechados e muito pouco arejados. Gostava da vida e de tudo que dela emanasse, fosse estrepitoso ou fosse manso, fosse cálido ou fosse a calota polar. Gostava dos marujos e das odisséias, assim como da luz estagnada que abrilhanta a existência no fim daquele espaço estreito, lúgubre, indesejado. Gostava dos chuviscos, do sol e das ribanceiras. Subia as montanhas pontiagudas para depois fazer rappel, contemplava as vidas, todas glamurosas, subjacentes a uma revoada de pássaros mortos. Reznor era, para ele, a outra face de Smith, ambos santificados, ambos diabólicos. Meu espirito arde pelo que já não quer, tenta, quer ficar aqui de pé, a postos, participando de toda essa balbúrdia pagã, reverenciando as formas, as formações, mas decola e decola e decola e se depreende a perder de vista. Não restando nada ou ninguém, ele vai para longe, vai para cima (ultra-leve...), e sobrevoa as cidadelas lacrimosas que choram um tráfego atribulado de rodas de jamantas. Meu espirito decalcado, míope já nada vê, mas sabe que está voando, porque sente o vento eriçando seus pêlos, os calafrios que causam as bruscas mudanças na temperatura, ouve (meu espirito ouve) o farfalhar das árvores mudas, apesar de estar parcialmente cego, aceso diante de neblinas, sobre essas montanhas pontiagudas, em meio a nevascas e degelos, meu coração se abriga, e feito um urso polar decide ruminar".

Noite
"Era uma história comprida. Tão comprida que Mariná optou por espicaçá-la, como se fizesse dela blocos de lembranças, como se nela nada estivesse ordenado de maneira cronológica, como se da tal história só restassem meros cortes desmemoriados de uma vida embriagada.

Seus leitores estavam todos bêbados, pondo-se a reler na verdade a existência de si próprios, que agora, traduzia-se de maneira apropriada sob olhares tortos e sem foco.

Eram quatro ou seis olhos, talvez multiplicados pelo desequilíbrio de si mesmos, flutuando num caldeirão borbulhante que emanava um forte odor etílico. Mariná revirava aqueles tocos de partes humanas que, invariavelmente, não hesitavam em encará-la.

Não era uma história comprida, era uma história quente e alucinada, repleta de olhares e indagações que a fitavam conforme mexesse o caldeirão. Era uma existência efervescente."

Madruga
"Assim, quando um choro pardo interrompeu a festa, ela se retirou. Um lamento que aos poucos se desfazia em lágrimas, como se uma pedra de gelo se abrigasse em seu peito. Mas por que? Ela mal sabia, embora se tratasse de algo que a acompanhara por todo esse tempo: Vinte e cinco anos, vividos distraidamente, como um eflúvio que se desloca ao sabor do instante.

Retirou-se. Foi ao banheiro e torceu o rosto sobre as roupas, tentando, em vão, segurar aquela torrente de falas que lhe escapava pelos cílios. A boca já não as depositava mais, e as mãos, crispadas, podiam tão só apreender a amargura que lhe tomava o corpo. Era como se farpas lhe fizessem cócegas.

Respirou e, dessa forma, resgatou o que ainda sobrava de si. Uma mulher franzina, mas que precisava, sobretudo, manter a serenidade. Engoliu a soma de lágrimas e retornou à sala. Lá estavam Lucy e Catalina, insípidas, deslumbrantes, deglutindo cada ovo de codorna que se arrolhava à exatidão da pasta de atum".

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