Primeiro a porta estanca:
bate. Clic.
E leve, o ar desmonta.
Estou presa.
Entrecruzo pernas e liames temporais.
Por mais que os sonhos possam nos aproximar do que sentimos, em aparições vidradas, olhos de gente que perpassa, que percebe-se, e em sensações táteis, não existe nada mais estridente do que a frieza da vida, do que o enjôo estomacal, do que a gastura de lá, à noitinha, pingo a pingo, bem quando escurece a lua.
Os passos que entôo para além da soleira não significam nada a não ser o vago evidente de que pretendo sair. E saindo recolho os pés aos movimentos antes imobilizados, e, como quem retira-se de um curral, de uma tipóia, eu vôo, alcanço alturas inimagináveis sob os calos de um feixe de preto, quando, quase a partir, o telefone me toca. Nada ouço: decolo.
Gradativamente vejo a rua. As paralelas edificadas são valas e correntes inundando os bueiros da cidade que escolhi. Tapumes e estrados, como também sombrinhas, irrefletem o mau dia de canteiros movediços de frutas : todas tortas. Re-chove.
Sem o saber, e ainda prisioneira dessa porta, dessas pelancas em que me afogo, vou desacelerando os passos como quem teme verdadeiramente escorregar. O chão, meu inimigo, não se mostra de acordo com meus anseios plumosos, vagueantes, visionários, quase pipas. Comportando-se feito um dançarino, ele baba em meus pés, espezinha meus sapatos, oleoso, desejando a minha súbita derrocada no tempo ou em qualquer um que me atropele.
A rua dos meus sonhos não seria de modo algum confusa. Seria leve, primaveril, e carregaria, a patins inabaláveis, cada momento de mim. Por isso é que quando o momento-perna, resultado de uma série de impulsos anteriores, correlatos e soberbos, resolvesse se aprumar à luz de um degrau, todos os ares e voltas influiriam para que aquela etapa não se perdesse, não se deslocasse, e que sua finalização fosse um silêncio e não risos na rua superexposta.
A exposição a que me sujeito nessas fraturas, abertas e destelhadas, me atormenta a ponto de eu ficar inerte, não conseguindo sem custo viabilizar a possibilidade de momentos que me preenchem as horas. Sou, por isso, de fato e sem temer, uma viagem percorrida de momentos em seqüência, imbricados, e mesmo estando em pane e descontrolada, percebo o momento-cérebro que apurrinha o momento-nervo-ótico, desalinhando as variadas pálpebras de meu corpo, que quando não são olhos são poros ou xotas. Posso averiguar também a sucessão que foi descontinuada, essa, de momentos-auditivos, quando a profusão de buzinas cessou de, em mim, ecoar.
E essa rua, sem fim, de edificações e corpos, sem fim, que trafegam por peles e mucosas, sem fim, que perambulam por cáries, indicadores e virgens, sem fim, que se aconchegam nos músculos, vazios, engarrafados, sem fim, de avenidas e mundos e terras que, na verdade, são corpos, são poesias encarnadas em corpos – como o seu, como o meu, como o corpo molhado e ralo do leito de um rio, como a pele fétida do fosso, e a artéria sanguinária da ladeira que levanta a morte, em cheiros e perfumes que evadem de unhas, de concreto, de cinzeiros, engendrados então pelos restos de gente-animal."
terça-feira, 30 de junho de 2009
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