quarta-feira, 29 de julho de 2009

Déruchette - in Os trabalhadores do mar (Victor Hugo)

"(...) Pássaro com forma de moça, que há aí de mais delicado? Imagina que a tens em casa. Supõe que é Déruchette. Deliciosa criatura! Dá vontade de dizer: "Bom dia, mademoiselle alvéola". Não se lhe vêem as asas, mas ouve-se-lhe o gorjeio. Canta às vezes. Na tagarelice, está abaixo do homem; no canto, está acima dele. Tem mistérios aquele canto; uma virgem é o invólucro de um anjo. Feita a mulher, desaparece o anjo; volta, porém, depois trazendo uma alma de criança à mãe. Esperando a vida, aquela que há de ser mãe algum dia conserva-se muito tempo criança, a menina persiste na moça; é uma calhandra. Pensa-se, ao vê-la: que boa que ela é em não bater as asas para ir-se embora!

A meiga e familiar criatura acomoda-se em casa, de ramo em ramo, isto é, de quarto em quarto, entra, sai, acerca-se, afasta-se, alisa as penas, ou penteia os cabelos, faz toda espécie de rumores delicados, murmura um não sei quê de inefável aos teus ouvidos. Quando ela interroga, responde-se-lhe; interrogada, gorjeia. Tagarela-se com ela. A tagarelice serve para descansar de falar. Há uma porção celeste nessa menina. É um pensamento azul misturado ao seu pensamento negro. Alegras-te por vê-la tão esquiva, tão ligeira, tão fugitiva; agradeces-lhe a bondade de não ser invisível, ela, que poderia, creio eu, ser impalpável.

Neste mundo o lindo é o necessário. Há mui poucas funções tão importantes como esta de ser encantadora. Que desespero na floresta se não houvesse o colibri! Exalar alegrias, irradiar venturas, possuir no meio das coisas sombrias uma transudação de luz, ser o dourado do destino, a harmonia, a gentileza, a graça, é favorecer-te. À beleza basta ser bela para fazer bem. Há criatura que tem consigo a magia de fascinar tudo quanto a rodeia; às vezes nem ela mesmo o sabe, e é quando o prestígio é mais poderoso; a sua presença ilumina, o seu contato aquece; se ela passa, ficas contente; se pára, és feliz; contemplá-la é viver; é a aurora com figura humana; não faz nada, nada que não seja estar presente, e é quanto basta para edenizar o lar doméstico, de todos os poros sai-lhe um paraíso; é um êxtase que ela distribui aos outros, sem mais trabalho que o de respirar ao pé deles. Tem um sorriso que - ninguém sabe a razão - diminui o peso da cadeia enorme arrastada em comum por todos os viventes, que queres que te diga? é divino. Déruchette tinha esse sorriso. Mais ainda, era o próprio sorriso. Há alguma coisa mais parecida que o nosso rosto, é a nossa fisionomia; e outra mais parecida que a nossa fisionomia, é o nosso sorriso. Déruchette, risonha, era Déruchette. (...)"

in Os trabalhadores do mar de Victor Hugo
(Tradução: Machado de Assis)

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