sábado, 19 de setembro de 2009

Barata e nada

"O dia é meu, o céu azul: poderia abraçá-los se quisesse. Á noite espezinho a tarde e mergulho sob os estrados da tapeçaria de lençóis, quando, em face de um cálido alvorecer, venho à tona arrolada a remelas e a estilhaços de medula.
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Ela era intensa, não cabia em si. Mundos arrolavam de sua pele, de seus cabelos. Era molhada.

... para depois procurar. Só que antes, muito antes - tão antes que já passou - eu tinha que fazer uma série de outras coisas, de mentirinhas, de entre-safras, de porra nenhuma, para só nesse ponto especifico, em algum momento indeciso, rijo e condensado, poder me safar de fininho, poder pular o muro, poder partir. Partir para procurar, procurar alguma minúcia, alguma reminiscência que - ufa! - eu acabei deixando de lado por falta de saudades.

Está feito: na verdade, eu ia principiar me embrenhando pelas caneluras da preguiça, pelo peitoril do que já passou, dispondo-me pé ante pé no cimento fresco, até resgatar do chão o montículo de flocos, até arrumar esse microlar que eu deixei às avessas, estando assim, nessa mesma posição - sentada, descadeirada, acomodada - como se varresse o entulho com os olhos. Depois, juntaria a bagunça num cantinho remoto, numa quina, empilhada, ereta, a fim de que nada me anuviasse a vista, e de que todos esses ciscos de meio-fio continuassem sendo próprios a isso, ao mínimo e inadvertido sinal da tormenta. Não há dúvidas: empenho-me nesse troço estática, sem ação, sem mãos ou pernas, sonolenta, quase sonhando, deitada, quase desmaiada, inerte, quase morta: a um passo de, na iminência de - apática. Meus calcanhares não respondem mais às ordens imperativas da minha mente. Mas é como se tudo não passasse de um mero desejo exclamativo sonado, dissimulando-se pelas intrincadas redes do não-fazer-nada-sem-movimento. ----------- Se tivesse sentido saudades, saudades constituída de suspiros, saudades do durante experimental, saudades das impressões perfeitas, saudades daquelas tigresas de tocaia na mata, saudades da obscuridade das coisas, saudades das incertezas fabulosas, ou se tivesse sofrido de dispnéia e saudades, se tivesse sido acometida pela insônia, pelo sonambulismo e pelas saudades - que sei lá que sufoquei -, se tivesse dilacerado meu corpo, minha alma e meu espírito de saudades - vomitado, urrado, me debatido, reivindicado - não precisava parar. Parar - para depois partir.

Ficar paralisada, indefinidamente, esperando - o quê? - toda bagagem de trecos escorregar por detrás de mim, todo o sangue, todo o tumulto de lixo se espraiar pelos móveis da casa, ansiando por aquele documento vazio - o ultimato da vida -, para daí emergir da letargia, afoita, como uma âncora lançada ao mar e logo em seguida içada. Parada, quase que meio alucinada, recurva, dedilhando notas sem som sobre o teclado, solfejando estribilhos de letras mudas, imundas, açoitando um mundo estranho e comprovadamente impossível. Eu, eu, eu - tomando fôlego pra continuar -, por que não tenho, ao que parece, saudade daquela infantaria de desejos que irrompiam de meus poros, feito calafrios inumanos, feito frutas de doces no pé, feito lulas e tentáculos, chocando-se ao perecível, ousando-se aos contra-sensos, importunando meia orbita e meio mundo de otários sem governo e direção. Eu, eu, eu, sempre eu, quando é difícil respirar para abortar o ontem - e que se foda o antes, e que se danem os documentos e registros extraviados, e que se enterrem os mortos -, para desencorajar o medo de afogar tudo isso em mim, para viver na base sôfrega, porém saborosa, da saudade."

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