sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Sobre Ana, a jacófila, e Guto, o "song à monga"

- Terminei. – Disse Guto tamponando a brochura enquanto Ana irrompia a porta indolente, relegando-a, na verdade, aos ácaros pulhas; como estavam, aliás, os guris na praça da Sé, o pote de margarina sobre a pia: ao sabor do acaso desordeiro. Uma pia de mármore, gagá, dessas que não se vê mais em parte alguma, a não ser que se engate marcha ré no tempo do espaço. Restituiu a banha ao lugar e sentou-se à mesa alva. Quase caiu. Depois, fez que ia. Não foi. Guto vira apenas um pacote trôpego, bulímico, de passo elefantino, mas já sabia que àquela altura só podia ser a tal, displicente, rechonchuda, despontando ao encalço das centelhas de neon cujas deixas espocavam pelas frestas da cidade. “Tem dobradinha” – murmurou borocochô – “Dentro do forno”. Sem hesitar, Ana deitou um par de raias de pó sobre a fórmica e, atenta à rinite sazonal que lhe cutucava as narinas, ao frio ocioso de meados de julho, deu dois tiros no alvo. Lift ::::::::::: lift! Aquele pó, ensopado em anilina, desidratado em forno de manicure, ensacado em qualquer coisa plástica, fora a melhor solução que encontrara para não ignorar tilts eventuais. Rosa bambolê. Passando ao largo do que se avizinha, um deleite sem igual invadiu suas papilas. Uma nesga de secreção escorreu pela narina esquerda rumo ao buço, mas ela conseguiu, ora inclinando a cabeça e, por seu lado, minorando a força gravitacional, ora retorcendo a mucosa nasal, remediar a patética situação. Os sinos da Igreja ribombaram, encenando um foda-se católico apostólico romano a todos que já sonhavam: 23 horas. Precisava dormir. Precisava, antes, “Caralho!” desbravar o quarto atrás da cartela do fármaco sem o qual não capotaria jamais. Como a missa estava marcada para às sete, o tempo que lhe restava para o descanso era parco, embora suficiente. Afora isso, havia terço, confissão, eucaristia, metrô e um galo pontiagudo que insistia em ciscar pelos arredores. Sim, participaria da liturgia. “A leitura, a homilia e a oferta” – sussurrou escorregando cadeira abaixo como quem parte rumo a uma antologia literária sideral.- Ana, terminei!!! – gritou Guto, dessa vez invadindo a cozinha à tamancadas – Putz, você chegou no final! – e sorriu à medida que dissecava o ambiente no rastro de suas pupilonas esculpidas a doses cavalares de prozac. Ele segurava um dos livros mais preciosos à Ana, Pais e Filhos, do Turgueniev, ou, como ela também gostava de dizer, "a história de Bazárov": um amante à moda antiga que havia sucumbido ao tifo e aos refugos da história. Era refém do segredo que com ele fenecera.

- Ah, que pena! - fingiu se importar, enquanto, corada, ainda espanava os restos de pó com um pano de prato.
- Pois é...
- E gostou? – indagou mecânica.
- Fantástico!... - disse ele, hipnotizado pelas palavras cruentas que acabara de ler. Ela deu de ombros.

Na verdade, haviam combinado uma espécie de leitura conjunta de algumas páginas do romance quando Ana lhe emprestara o livro. Munida de certa altivez, entretanto, não achava que ele seria capaz de compreender patavinas, já que nem São Dostoiévski, ao que parece, o fora, encaminhando o devaneio do suposto niilista com cópia oculta (cco) para Ivan. Por ora, ficara feliz por não ter de se submeter de forma tão gratuita à tamanha tortura cênica. Mesmo assim, sublevada que estava pelo anti-efeito viciado, deu sequência a um discurso dos mais maníacos, arregalado, enquanto Guto franzia o cenho e punha os olhos em banho-maria:

- Não vejo muita diferença entre Pedro, o Grande, que só queria abrir uma saída para o mar; os marxistas, que queriam banir a sociedade de classes; Bazárov, que dinamitou o bunker; uma prostituta, que troca o que tem pelo o que não tem; ou um alcoólatra, que canoniza com vodka-benta e limão o Santo Boteco da esquina. São todas, irremediavelmente, tentativas de sair, de ir embora, de partir e tudo deixar à sombra de um útero baldio, estéril, oco. O homem anseia pela mudança: sair de casa, sair da toca, sair na noite e perder a dignidade no pardieiro-emblema chamado cidade. Sair, conquistar, fincar raízes e sair novamente! Que seja! O próprio ato de nascer é uma saída! Partimos rumo à vida. Ou, parafraseando Rimbaud: partir é retomar o caminho! – e soltou uma estrepitosa gargalhada.
Era a deixa que Guto precisava.
- Brilhante sua colocação, Ana. Rimbaud disse isso é? Whatever, parto então. Pela enésima vez, imagino. Boa noite, querida.
- Calma aí!... É preciso esperar um bocadinho. Bebês não nascem de supetão... – Ana percebia, enfim, que não falava sozinha, mas que alguém a ouvia. No caso, Guto, aquele sujeito que alugava um quarto para ela e para o qual, vez por outra, ela emprestava um romance.
- O quê?
- A globalização, por exemplo.
- O quê??? – repetiu atônito.
- A globalização. Essa palavra empertigada metida a pós-moderna. Isso sempre existiu. Se hoje falamos com alguém que mora do outro lado do atlântico pelo MSN e se há 500 anos tínhamos que construir caravelas para fazer o mesmo, pouco importa. A intenção sempre foi a da conquista - não raro pestilenta, é verdade. Cheia de jugos e grilhões, mas legítima em seu “Avante!”. O mundo jamais foi outra coisa que não potencial ou realmente global. Não entendo por que razão no século XX isso virou notícia, virou invasão, virou probleme, virou anti-cultural, virou “slovo”. A aventura humana também passa pela terra,Itálico pela lama ou, permutando as letras, pela alma. Não sei qual é a diferença entre o Cacique Coral equatoriano e o MC Donald’s norte-americano. Ambos, a exemplo do “foda-se” ocidental, são franquias aptas a nos infligir facadas. A conquista é inerente à anima nesse tráfego constipado rumo à coisa. Diante da banalização do “nice to meet you”, talvez, precisaríamos, a exemplo do êxtase primitivo, buscar exits espirituais... Ou, quem sabe, trilhas menos, menos... – e, furiosa, socou a fórmica – desalmadas, lamacentas, egocêntricas, o que me soa, na verdade... uma obviedade sem tamanho. – De súbito, Ana refreou o ímpeto tagarela, agarrou um penacho de cabelo, levou o mindinho à boca e se pôs a fitar a janela. Esse delito pareceu a Guto outra chance de se eclipsar. A fim de não induzi-la a um terceiro round verborrágico, no entanto, preferiu se certificar do terreno onde pisava.

- Acabou? – perguntou nocauteado.
- O quê? – Ana assustou-se.
- Esse seu discurso estúpido. Acabou?
- Eu... eu não sei...
- Bom, pra mim chega. Tô indo.
- Sim, saia!.. Isso mesmo.
- Não. Essa coisa de sair só vai rolar amanhã, gata. Agora vou dormir. Boa noite. – e acrescentou – Passe no banheiro, hein! Acho que há um restinho de maquiagem na sua bochecha. Aqui, ó – e indicou a Ana o suposto lugar apontando em si próprio. Ela não ouviu. Guto dirigiu-se ao quarto e desencanou.

Ana ficou em silêncio, ainda atada por alguns pensamentos que, como rebentos de tartarugas-marinhas, precisavam vir à tona a fim de serem desovados na praia. Lembrou-se das pí-lu-las. Enfiou a mão na bolsa e, com a ajuda de um copo d’água, engoliu três comprimidos. Rezou cinquenta ave-marias – permeadas, cada dezena, por um Pai Nosso e um Glória a Deus. O terço. Meia hora depois, com o pulso linear, murmurou: "Terminei. Cheguei mesmo no final, Guto". À revelia do que quer que fosse, a moça dormia. Zzzzzzzzzzzzzzzzzz...


Pinturas: Gerhard Richter

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